Remembrança

 A cada tanto o ritual se repete.

Cuidadosa e coreográfica ela abre a velha caixa de chapelaria francesa. Sem pressa. Intocada, quase sagrada. Dalí sai para ser lavada, passada, perfumada com lavanda e para onde retorna, antes de qualquer ameaça. Coadjuvante em sua noite de núpcias de princesa do medievo, já não é a mesma. As cores pálidas no tecido em tramas frágeis trazem as marcas de longa jornada.

A camisola. Quantos lençóis a haviam abraçado?

Depois de lentos mergulhos em água e espumas azuladas, sopro de vento calculado, ainda úmida, ali jaz, mal deitada na fina tábua de passar roupa. Aos golpes de calor o brilho da seda quente ludibria os sulcos e as ranhuras da sua história, nesse instante evocada.

As flores de cetim, as rendas delicadas e as medidas do corte enviesado já não pertencem aos contornos dilatados cuja pele a eles não mais se ajusta.

Em sua longa estiagem amorosa, dominada por lembranças, a ela se agarra. Dos seus olhos, sempre duros, uma lágrima se equilibra entre as pálpebras. E seu rosto em volátil suavidade curva-se em reverência. À saudade. Da pulsação das horas. Do perfume da flor de laranjeira. E das promessas costuradas nas nervuras do lamê.

(por Maria Balé)